A vida que quer mais vida
Hoje, acordei com o barulho da chuva torrencial de verão.
Aquelas chuvas intensas, que despertam do chão o cheiro de terra molhada e evocam o som forte do encontro da água com as folhas, galhos e vidas dos que habitam o mundo na copa das árvores.
Abri a janela; a porta do quarto que dá pro jardim; as frestas que me conectam com o natural; senti a umidade entrar e me rendi ao desejo de alma de ficar deitada a manhã inteira vendo o tempo passar.
Foi só ao levantar que percebi que os meus vizinhos - três pequenos passarinhos que recém romperam com suas próprias cascas-casas-casulos - alçaram voo rumo ao desconhecido, completando o primeiro ciclo de suas vidas. O ciclo do nascimento e do caminhar rumo à independência. Durou 28 dias; de hoje até o momento em que sua mãe construiu o novo ninho, aos trancos e barrancos, coletando galhos e ramos de cipó molhados pela chuva no dia 16 de janeiro desse novo ano.
Sei da data exata em que o novo ninho foi construído porque, dias antes, havíamos retirado desse mesmo parapeito um ninho antigo, perfeito e inanimado; palco para o nascimento de outra ninhada que também seguiu seu rumo, levando a vida junto; obra de arte da natureza, que despertou tamanho encanto, que ficou exposta na mesa-altar, dividindo o protagonismo junto com a estátua de Iemanjá e também com Narciso, passarinho de outra espécie que ganhou seu nome por vir todos os dias namorar seu reflexo no espelho enquanto eu trabalho, escrevo ou pinto.
Nesses 28 dias, plantinhas brotaram nos cipós que compunham o novo ninho; a mãe concebeu e chocou seus ovos-que-viraram-filhos; Narciso começou a roubar galhos secos do ninho antigo, me ensinando que a perfeição não vem do imaculado e sim do movimento; da vida que quer mais vida. Vi meus novos vizinhos nascerem, crescerem e ensaiarem seus voos na beirada do precipício-que-também-chamavam-de-lar.
Tenho prestado atenção nas leis da natureza; no tempo natural, que traz mais valor ao simples e ao invisível-que-só-se-mostra-para-quem-está-disposto-a-ver; no constante nascer e renascer de seres, ideias, estruturas e encantos que revelam o pulsar dinâmico e um tanto caótico dessa vida e de todas as outras vidas.
Miro nesses 28 dias e mergulho nos meus 28 anos, recém celebrados.
Um fractal maior dessa vida que pulsa e que clama pelo movimento; pela reinvenção; pela concepção; pelo parto; pela criação; pelo ensaio do voo rumo ao desconhecido; pela despedida do que já foi; pela surpresa de ver o inanimado sendo reciclado e transmutado em uma nova vida.
Me tornei missionária da vida que quer mais vida, desde que percebi que estava gastando muito mais energia ao criar um mundo inóspito de se viver - desconectado do que é natural.
Apesar de despertar temores, frio na barriga ou desconfortos, me parece que é muito mais fácil e encantado simplesmente me render ao movimento orquestrado; confiar no mistério que rege tudo e que torna a fé inabalável; enxergar os acontecimentos que me atravessam com o mesmo encanto e curiosidade que observo a jornada dos meus vizinhos que não resistem ao romper da casca, ao saltar do ninho ou ao mergulhar no desconhecido.
Eu passarinho
Me pergunto se Mario Quintana também tinha o hábito de se tornar Um com seus vizinhos-amigos-pássaros-Todo; mas é claro que sim; tinha alma e ofício de artista; aposto que também era missionário dessa tal de vida que quer mais vida.