A vida é sobre se criar. E o mundo que eu quero criar não é o mundo que existe.
Eu lembro como se fosse ontem o dia que decidi sentar pra escrever.
Lembro do caderno que usei, de capa florida e folhas sem pauta; do apartamento de Botafogo, que era pequeno, mas era casa; a primeira que consegui pagar com o meu próprio bolso; de sentar no sofá azul, que hoje habita a casa da minha irmã; do silêncio soturno que senti nas primeiras horas do dia-que-ainda-não-recebeu-a-luz-do-sol.
Lembro do medo que sentia ao olhar a página em branco; medo que ficou pra trás, momentaneamente, por ser sufocado por um sentimento ainda maior. A sensação de que tinha que escrever pra sobreviver. O entendimento de que reprimir o que quer que seja que existia ali dentro de mim não tinha me levado a lugar algum senão o completo desespero. Desespero que abriu caminho para a raiva.
Sentia raiva o tempo todo. E naquela época, não sabia que existia outro jeito de sentir raiva sem ser ficar de mal com o mundo, com Deus, com quem me amava e comigo mesma. Se há anos atrás, me contassem que enquanto eu voluntariava nos altos de uma montanha no Peru, eu teria feito parte de um estudo feminino sobre a raiva, onde eu aprendi a sentir e a canalizar a raiva no meu corpo, eu teria duvidado; participar, então? inconcebível; afinal, eu ainda não tinha me tornado quem eu precisava ser pra fazer esse mergulho tão profundo.
O que me restava? Escrever. Li um livro de autoajuda depois de ter tido um surto de raiva antes de ir pro trabalho e dentre as inúmeras dicas, havia a escrita. Uma forma de me expressar que era pra ser ilesa de julgamentos e de dificuldades; um momento de intimidade comigo mesma e de encontro com o que quer que fosse vomitado no caderno de capa florida e folhas sem pauta.
Pra minha surpresa, os primeiros encontros foram vazios; tímidos. Não sabia o que fazer comigo mesma; muito menos o que botar no papel. A sensação de encarar o desconhecido era desconfortável. E então, percebi algo de inusitado.
A raiva que antes ocupava todo o meu corpo foi se diluindo em tristeza. Me percebi triste por não saber o que escrever; por me dar conta de que esse pequeno momento de conexão era o primeiro aceno em anos que dei em direção a mim mesma; fui inundada pelo sentir que me trouxe compreensão.
Só preciso escrever meia página; só preciso sustentar a decisão de assumir o protagonismo; só preciso ter coragem de transbordar o que sinto;
se sinto tudo, a raiva-que-borbulha-o-peito-e-antagoniza-o-mundo-porque-também-quer-sentir vai embora.
Então escrevi. Meia página por dia até sentir que havia mais a ser sentido; mais a ser dito; mais a ser eternizado nas folhas sem pauta do caderno florido.
Naquela época não tinha consciência disso, mas a decisão de escrever pra sobreviver foi o primeiro passo no resgate do meu Eu criativo - ou só do meu Eu, já que um não existe sem o outro.
A escrita se tornou porto seguro.
Uma permissão. Escrevo, logo sinto.
Um ritual. Sinto, logo escrevo.
Me abri pra ganhar intimidade profunda com o que acontecia dentro de mim e me surpreendi com o universo rico e repleto de camadas; nuances; sonhos; traumas; sentidos; desejos; sensações; apelos. Sinto muito.
Perdi o medo da folha em branco.
Deixei pra trás o desconforto de não saber o que fazer comigo mesma.
Vi o padrão de me reprimir ser substituído pelo desejo de me permitir ser.
E recebi de braços abertos o sentimento que emergiu quando vi brotar nas páginas o desejo de experimentar a pintura.
Eu lembro como se fosse ontem o dia que decidi sentar para pintar.
Lembro da tela improvisada, recortada do papel pardo de uma sacola da Farm; das tintas guaches Acrilex, que comprei na papelaria da esquina da Rainha Elizabeth, com poucos trocados; do apartamento gigantesco de Copanema (eu nunca soube dizer se morava em Copacabana ou em Ipanema, mas gostava de dizer que morava nos dois); da sensação que tive de poder criar meu próprio lar; de sentar no mesmo sofá azul, que veio de mudança numa Kombi engraçada; do barulho dos ônibus da Rainha Elizabeth, que faziam as janelas da minha casa tremer em uma dança improvisada.
Tudo havia mudado.
Eu já não era mais a Duda que tinha medo de sentir; não estava sendo motivada pelo impulso de resgatar a mim mesma de uma vida vivida no modo de sobrevivência; pelo contrário, estava totalmente rendida.
Imersa no meu mundo interior, decidi pintar; não para sobreviver, mas para me aprofundar; me conhecer ainda mais; acessar partes minhas que estavam esperando o tempo certo para aflorar.
Comecei a perceber similaridades no processo da pintura com a escrita; entendi que ambas são canais do processo criativo; e que o processo criativo é o que nos torna humanos; o que nos conecta com a vida cheia de vida.
Entendi que a nossa natureza é criativa e que a todo momento criamos histórias sobre o mundo a nossa volta como forma de darmos vazão à intensidade que transborda. Me tornei estudiosa do ato de criar e vi minha vida se transformar quando adicionei o elemento da intenção.
Vi brotar em mim o desejo de criar não a partir do impulso ou da exaustão, mas sim do chamado da reinvenção; o sonho de criar meu próprio mundo, onde a raiva-que-borbulha-o-peito-e-antagoniza-o-Todo-porque-também-quer-sentir não se sustenta; a permissão para existir é que dá o tom.
Eu me permito ser criativa.
Eu me permito flertar com o grandioso.
Eu me permito criar a partir da conexão.
Eu me permito. E se me permito, é porque naquele fatídico silêncio soturno que senti nas primeiras horas do dia-que-ainda-não-recebeu-a-luz-do-sol, me encontrei nas folhas sem pauta do caderno florido e arrisquei; risco-grito-fôlego-vivo.
Eu lembro como se fosse ontem o dia que decidi sentar pra escrever.
Risco-grito-fôlego-vivo.
Obrigada por me ler até aqui.
Escrevi esse texto-respiro como uma provocação, para além de um relato de como a criatividade me trouxe de volta à vida.
E se em vez de vivermos em modo de sobrevivência ou em busca de nós mesmos, ativássemos o nosso poder de protagonismo e decidíssemos criar quem gostaríamos de ser?
A vida enquanto obra de arte. Nós enquanto artistas que têm o poder de criar, reinventar, experimentar e errar. De novo e de novo.
A vida é sobre se criar. E o mundo que eu quero criar não é o mundo que existe.
Com esse texto, estou abrindo as inscrições para a Lampejo, uma oficina de autoconhecimento criativo. Uma jornada para quem tem (ou quer ter) coragem de criar o próprio mundo. Eu espero que você se permita.
https://linguagemdomundo.orbitpages.online/lampejo
Nos vemos do outro lado.